Carlos Moreira
“Não olhava para trás, porque olhar para trás era uma maneira de ficar num pedaço qualquer para partir incompleto”. Caio F. Abreu
Há duas coisas que eu julgo importantes na vida: estar sempre com os olhos no horizonte e manter os pés plantados no chão. Aprendi que olhar para o infinito mantém viva minha necessidade de sonhar, de crer, de me projetar para o inusitado, em busca do novo, do desconhecido, da aventura.
Mas foi depois de algum tempo que entendi que a existência só se torna real quando as marcas de nossos pés ficam esculpidas no chão da terra. Sim, tem de haver rastros em nossa vida, trilhas em nossa história, caminhos em nós – uns construídos para dentro, em busca de quem somos, outros, para fora, para materializarmos o que seremos.
No meu pragmatismo, construí uma dialética sobre esta questão. Ela afirma que eu devo sonhar, mas sem muita divagação; acreditar, mas sem me perder na ilusão; almejar, mas apenas aquilo que pode ser alcançado; desejar, tudo o que possa fazer de mim alguém melhor. Sim, entendi que devo dar asas aos meus olhos, para que eles voem como os pássaros, mas raízes aos meus pés, de tal forma que sejam firmes como as árvores, assim terei a possibilidade de ser livre para pensar e firme para realizar.
Preste atenção a este relato: “...um deles disse a Ló: "Fuja por amor à vida! Não olhe para trás e não pare em lugar nenhum...””. Gn. 19:17
O texto é bem conhecido. Ló era parente de Abraão e havia saído com ele de Ur dos Caldeus na saga de encontrar Canaã, a Terra Prometida. Depois de certo tempo, eles se separaram, e Ló veio a habitar em Sodoma, uma das cinco cidades-estado do Vale de Sidim, no Mar Morto, um lugar descrito como paradisíaco.
Naquele local, Ló, sua esposa e mais duas filhas tentaram se estabelecer. Contudo, aquela metrópole, em especial, tinha uma série de problemas, conforme o Relato de Ezequiel 16:47-50, onde Sodoma é descrita não apenas como um lugar onde a imoralidade era prevalente, mas também como um local onde imperava a ganância, a ociosidade e a arrogância, além de um profundo desprezo pelos pobres e necessitados.
Aparentemente, Ló tentou alertar as pessoas sobre seu modo frívolo de viver, conforme o capítulo 19:9 de Gênesis, onde vemos a população afirmando que ele, como um forasteiro, não podia ali se constituir juiz. Mas, fato é, tornou-se impossível conviver naquela sociedade sem se impregnar com seus valores e práticas. Por isso, é muito provável que parte da “cultura de Sodoma” tenha se instalado não só na consciência de Ló, mas também em sua alma.
Por aqueles dias, dois seres espirituais visitaram Sodoma, e avisaram a Ló de que a cidade seria destruída, tamanha era a sua perversidade. O relato está descrito no texto que citei acima. A degradação social e moral de Sodoma havia chegado a um ponto tal que ela acabou sendo entregue a sua própria sorte, tendo sido destruída por uma “chuva de fogo e enxofre”, conforme o relato bíblico, talvez algo ligado a uma erupção vulcânica.
Curioso, entretanto, é o fato de Ló, mesmo tendo sido avisado de tudo o que sucederia, ainda demonstrar tanta dificuldade em sair da cidade. Bem dizer, isso só aconteceu porque os seres espirituais, literalmente, o arrastaram para fora com a família.
Há três aspectos que julgo interessantes no texto e que me remetem ao modo como as pessoas vivem em nosso tempo. O primeiro está na expressão: “fuja por amor a vida”. Ora, a exclamação denota a dramaticidade da situação. Estava claro que aquele homem estava indeciso, inseguro, que havia amarras existenciais que o prendiam aquela cidade.
A questão ali era: como deixar para trás casa, mobília, trabalho, e tudo o que eles haviam construído no período em que ali habitaram? Era uma cisão traumática, abrupta, não obstante, necessária.
Não raro encontro gente que está presa a coisas, lugares, relações, patrimônio, “heranças” das mais diversas. Elas precisam cindir com o passado, abandonar, partir, colocar o pé na estrada e ir, mas ficam relutando e, por vezes, “morrem em Sodoma”, presas a estacas existenciais que não podem ser removidas do chão da terra.
Em segundo lugar, aparece a citação: “não olhe para trás”. A expressão tem duas conotações: 1- tudo o que havia ficado ali estava por ser destruído e era mais do que certo que ver o fruto de uma vida virando “cinzas” não seria algo bom para a alma; 2- a proposta agora era olhar para frente, para o novo, era lançar-se pela fé na certeza de que Deus proveria tudo o que fosse necessário para o restabelecimento da vida.
Desgraçadamente, contudo, tenho visto que em tais circunstâncias, já se instaurou em nós uma espécie de vício psicológico que nos aprisiona ao passado, nos faz sempre olhar para trás e lamentar, é uma nostalgia pelo que já se foi, uma melancolia masoquista que para nada aproveita a não ser gerar feridas no coração e tristeza no ser.
Por último, aparece mais um conselho: “não pare em lugar nenhum”. Esse era mais um desafio: caminhar até que os pés pudessem, enfim, descansar de toda fadiga da vida. Há muitas coisas atrativas quando se está caminhando, muitas das quais roubarão nosso objetivo de chegar a um lugar seguro. Portanto, lembre-se: siga até discernir que você está onde deve ficar.
Há situações em que não adianta apenas partir, é preciso ir o mais longe possível, afastar-se em definitivo, romper totalmente. Sim, só se deve parar quando o “lugar” for apropriado, quando as circunstâncias apontarem que ali se pode lançar alicerces, criar raiz, fincar novamente a vida no solo que permitirá que sementes sejam plantadas para que frutos sejam colhidos, frutos de graça e misericórdia.
Em minhas andanças pela vida, tenho visto muita gente presa a “Sodoma”. Outros tantos fugiram de onde estavam, mas não o suficiente para reconstruir uma nova história. Há os que mesmo seguindo, sempre olham para trás, não conseguem se esquecer daquilo que já se instalou no ser como consciência prevalente, como sentimento pulsante ou vício psicológico.
Aqui e ali encontro gente assim. Eles estão sempre amargurados, dando algum palpite sobre o que você faz, como faz ou porque faz. São mestres aos seus próprios olhos, sabem de tudo, mas não aplicam nada a vida de tal forma que ela se torne relevante. Esses sempre vivem do que já foi, exibem seus currículos cheios de feitos do passado, mas, tragicamente, calcificaram-se na existência real e atual. Para estes, deixo aqui o meu recado...
Enquanto você fica me criticando, teoriza sobre o que penso, falo ou escrevo e imagina como seria fazer de uma outra forma, ou sonha que poderia ser diferente, enquanto você está no seu conforto, com suas questiúnculas, se afogando em seus próprios sofismas, envelhecendo sem se gastar, amontoando discursos que nunca proferirá, eu daqui vou fazendo acontecer, vou realizando do jeito que dá, do jeito que sei, da forma como aprendi, no peito e na raça, na fé e na coragem, na ousadia e com boa consciência.
Sim, enquanto você fala eu faço, enquanto você critica eu empreendo, enquanto você aponta o dedo eu estendo a mão, enquanto você filosofa sobre o amor eu o encarno. Mas eu quero lhe dizer algo: quando você tiver o tempo que eu tenho na estrada da vida, e seus pés sangrarem o tanto quanto os meus, quando tiver despencado de todas as janelas e beijado a lona como eu beijei, e quando você largar a sua retórica tola e a sua empáfia fajuta, caminhar pelo caminho que eu caminhei e cometer os erros que eu cometi, nas circunstâncias que os cometi, então sentarei com você a mesa, beberei do cálice da alegria e celebrarei a vida com gratidão ao seu lado.
Mas, até lá, meu "mano", entre nós está o céu e a terra, e o Juiz a porta, para julgar a cada homem segundo aquilo que ele tiver realizado em vida e pela vida, nem mais, nem menos, simples assim... Portanto, enquanto você só existe para olhar para trás, deixe-me continuar seguindo em frente, pois, saiba, esse é o meu destino, essa é a minha sina. Muito prazer: Carlos Moreira.
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