Rev. Marcelo Lemos
Eu acredito nos dons, por mais que isso me cause alguns problemas nos círculos reformados, onde tem até quem se recuse a me aceitar como um deles. Sim, creio nos dons, e não me envergonho disso. Não me envergonho, por exemplo, de já ter tido uma visão maravilhosa da Segunda Vinda, uma experiência que compartilhei com pouquíssimas pessoas [dá pra contar nos dedos de uma mão!], dentre elas, a minha esposa. Faço questão de guardar a visão comigo, pois creio ter sido algo pessoal, entre Deus e um pecador. E por mais que minha vida tenha sido restaurada depois daquela visão, o fato é que Cristo não me chamou para compartilhar sonhos, mas sim, a Palavra de Deus. Não estou dizendo que contar os detalhes da visão à vocês, ou a outros, seja pecaminoso, mas sim que anunciar o Evangelho é algo muito mais importante e urgente.
Contudo, acreditar nos dons espirituais não é o mesmo que acreditar em “todo espírito”. “Amados, não creiais a todo espírito, mas provai se os espíritos são de Deus, porque já muitos falsos profetas se têm levantado no mundo” (I João 4.1). Desde criança tenho escutado pessoas afirmarem ter ido aos céus, ou ao Inferno. O Brasil já teve um famoso “Adão”, que não apenas teve tal experiência, como a teve enquanto “mortinho da Silva”, sendo ressuscitado depois... Nosso Adão brasileiro afirma ter sido acompanhado por Cristo numa viajem de três dias ao Céu e ao Inferno, já a americana Mary Baxter teve maior privilégio: o passeio durou 40 dias. E alguém me envia o vídeo de uma pregação-testemunho de uma “missionária” brasileira que já visitou a terra de Dante umas 15 vezes. Uau! O nome dela é Yoana Santo...
O que mais me incomoda nesses testemunhos todos não é [suposta] visão em si. O maior problema nisso tudo é a descarada desvirtuação do ministério da Palavra. Essa gente fica famosa, talvez até ganhe um bom dinheiro, para encantar seus ouvintes com histórias mirabolantes, enquanto a exposição da Escritura é simplesmente ignorada. É quase impossível não pensar na imagem de um Circo quando vejo a Igreja propagandear “ex-bicha”, “ex-noia”, “ex-traficante”, “ex-bruxo”, ou “ex” qualquer coisa. Certamente aquele que foi liberto de seus pecados pode, e até deve, testemunhar ao mundo, no entanto, nunca pode substituir a Palavra por sua experiência pessoal. Aliás, todos nós somos “ex”alguma coisa, e muitos ainda lutamos contra os nossos “ex”, seja lá o que, e não creio que o “ex” de alguns seja mais impressionante que o de outros. Nossas experiências com Deus devem entrar numa Pregação como a “cereja do bolo”, e não o contrário. Infelizmente, toda vez que leio ou escuto certos “testemunhos sobrenaturais”, a [suposta] experiência parece ser o bolo, e as Escrituras são citadas, de modo isolado, apenas para rechear a coisa, e imprimir alguma respeitabilidade bíblica ao relato.
E existe algo ainda mais grave. Para os cristãos a revelação canônica está fechada, nada mais lhe podendo ser acrescido. Ainda que o Espírito Santo continue falando aos crentes hoje, nenhuma nova doutrina, ou mesmo nenhum novo detalhe sobre doutrina podem nos ser dados. Todo o necessário para a salvação, para sermos perfeitos em Cristo, já nos foi revelado, e está gravado com tinta indelével nas páginas do Santo Livro. Lembro que quando tinha uns 12 anos algumas pessoas foram a minha casa fazer um culto doméstico, e uma das irmãs, durante a oração, aproximou-se de minha mãe e disse: “Helena, leve seu filho ao médico, ele precisa de cuidados. Deus está dando um livramento para ele, mas leve ao médico, pois vejo que o pulmão dele está seriamente comprometido”. Como eu não sentia nada, minha mãe e eu ignorados o aviso (e eramos pentecostais!). Uns seis meses depois fui parar no hospital, com um derrame pulmonar... “Mãe, seu filho deveria estar bem ruim, mas, para nossa sorte, ele vai ficar bem, e o tratamento vai ser bem tranquilo!”.
Se para o médico eu tive “sorte”, para mim aquilo foi uma dádiva do Senhor. E por mais que meus irmãos reformados me critiquem, em nada vejo aquela revelação contrariando a Palavra de Deus. Em primeiro lugar, a pessoa não nos trouxe nenhuma nova doutrina. E em segundo lugar, o que ela disse se mostrou verdadeiro. Infelizmente nem toda vez é assim. Também já presenciei “profetas” ameaçarem “irmãs que cortam o cabelo”, e tantas outras tolices. Sem falar nas promessas que jamais se tornam realidades, e culpa nunca é do profeta... O que vejo em muitos [supostos] profetas, especialmente nesses viajantes entre o Céu e o Inferno, são heresias e mais heresias, e uma deturpação completa da mensagem do Evangelho.
Você pode desmascarar todos esses profetas com uma ou duas perguntas: “Por qual razão Deus fez isso como você?”. Ou então: “Por qual razão ele te ordenou viver contando isso aos outros?”. Basicamente as respostas serão bem parecidas com a que vemos na capa do livro da senhora Baxter, “Mary Katherine Baxter foi escolhida por Deus para fazer o mundo conhecer a realidade do Inferno” (edição americana). Basicamente é isso. Essas pessoas acreditam, ou parecem acreditar, que a experiência delas é extremamente importante para a salvação de outras pessoas, e talvez, até para a sua salvação pessoal. O grande problema é que isso é absolutamente falso, é outro evangelho, e não o de Cristo. Não precisamos de novas revelações para sabermos da existência do tormento eterno, da realidade do céu, ou do caminho para a Salvação. Isso já nos foi dado, e é extremamente ridículo ver evangélicos, que se orgulham de ser o “povo da Bíblia”, precisando desse tipo de muleta para acreditar em Deus! Será mesmo que essa turma toda, que não perde tempo quando precisam criticar os católicos romanos, realmente leem suas Bíblias. Eu não colocaria minha mão no fogo. Fogo? Ops!
“E disse ele: Rogo-te, pois, ó pai, que o mandes à casa de meu pai, pois tenho cinco irmãos; para que lhes dê testemunho, a fim de que não venham também para este lugar de tormento. Disse-lhe Abraão: Têm Moisés e os profetas; ouçam-nos” (Lucas 16:27-29).
Além de serem vendidas como muletas para a fé das pessoas, tais revelações não raramente apresentam um plano de salvação diferente do apresentado pelas Escrituras. Adão Campos, por exemplo, um dos turistas sobrenaturais dos mais famosos, afirmava que “Há grande apronte no Céus irmãos, aguardando a sua Igreja! Ví santos (que), chegaram na Porta dos Céus, (que se diziam santos), que não puderam entrar nos Céus!. Santos, (que se diziam santos barbudos, cabeludos), seus nomes não estavam no Livro da Vida! (…) Santas que chegavam no Céu, o anjo madava virar suas costas para ele; ele media seu..., (lá no Céu, os cabelos das irmãs, eles não dizem cabelos, eles dizem véu), eles mediam..., o..., o anjo media com a mão os seus véus (e ele sente a falta quando falta); e ele perguntava: quê, que fizeste do teu véu? Ela dizia: “E-eu aparei, eu tosquiei!” E o que mais que fizeste? “Eu pedi misericórdia, pedi perdão!” Que mais que fizeste? “Eu nunca mais tosquiei!” (Então tinha perdão, entrava no Céu.). Outras ele perguntava pras..., pras irmãs o seu véu; elas diziam que tinham tosquiado, e..., ele perguntava que mais que fizeste? Ela dizia que tinha pedido perdão, o que mais que fizeste? E ela disse que tinha..., tosquiado de novo e não pediu mais perdão por que tinha vergonha! O anjo chamava outro anjo e mandava amarrar de mãos e pés e lançar nas trevas exteriores”.
Onde a Bíblia ensina que homens com cabelo crescido, ou barba crescida, não herdarão os Céus? Onde se diz que mulheres que aparam o cabelo serão condenadas ao Inferno? Ainda que muitos pentecostais ainda defendam isso, não é o que a Bíblia diz! Assim, o que temos nessa visão é um falso profeta impondo regras sobre a vida das pessoas, com base em uma suposta revelação. Interessante esse gente toda se dizendo “evangélica”, quando a doutrina da Reforma Protestante fez questão de enfatizar que os cristãos só estão obrigados àquilo que a Escritura expressamente ordena ou proíbe, ficando o restante nas mãos da liberdade de consciência de cada um.
“A Escritura Sagrada contém todas as coisas necessárias para a salvação; de modo que tudo o que nela não se lê, nem por ela se pode provar, não deve ser exigido de pessoa alguma seja crido como artigo de Fé ou julgado como requerido ou necessário para a salvação” (39 Artigos da Religião, VI). Confissão de Fé da Igreja Anglicana.
E há mais erro. Vamos imaginar que essas pessoas não nos trouxessem erros teológicos gravíssimos, mas apenas detalhassem como é o Inferno ou o Céu. Ora, se nos fossem necessários os “detalhes”, certamente a Bíblia nos já teria contado. Como é possível uma religião ser tão prepotente a ponto de achar que todos que nos antecederam a 2000 anos sabiam menos sobre o céu e o inferno? Eu ouço gente dizendo que no Inferno tem corredores, grades de ferros, tridentes, e tantas outras coisas do tipo. Talvez tenha. Mas a Bíblia não diz que é assim, logo, pode não ter nada disso. Li um livro onde o homem diz que as ruas dos céus são, literalmente, de ouro, as casas são de ouro e pedras preciosas, um lugar onde nada do que conhecemos hoje parece existir. Talvez, mas eu prefiro pensar que nos deitaremos sobre a grama verde, tomaremos suco de laranja e, quem sabe, um bom vinho. Se tiver pastel de feira então, que maravilha! Agora, a minha opinião é pessoal, e eu não saio por aí dizendo que “fui no céu e vou contar para todo mundo como é lá”.
Em seu livro, “O Caos Carismático” (Editora Fiel), John MacArthur acertadamente descreve o que se vê em muitos lugares: “A erudição e o estudo meticuloso são preteridos por mensagens particulares da parte de Deus”. MacArthur, como praticamente todo cessacionista, acredita que esse abuso acontece com todos que creem nos dons espirituais. Eu discordo. No entanto, ele está essencialmente correto na descrição da mentalidade do que talvez seja uma grande maioria. Há um grande perigo aqui. Vale lembrar que as inúmeras seitas que nos cercam começaram com revelações adicionais: adventismo do sétimo dia, testemunhas de jeová, o Livro de Mórmon, e outras mais. O que esses grupos tem em comum? De um modo ou de outro, elas abandonaram o conceito evangélico fundamental: a suficiência das Escrituras.
Assim como os Apóstolos nos deram os fundamentos da Fé Cristã, o mesmo é dito a respeito dos Profetas canônicos. Certamente a Palavra de Deus chama homens como Agabo de profetas, mas vale lembrar que as palavras de Agabo não se tornaram canônicas. Ele não era profeta como S. João, ou como Jeremias. Muitas pessoas no Novo Testamento, incluindo mulheres, traziam avisos, exortações, e consolo inspirados por Deus. Jamais se diz que suas palavras tenham sido canônicas. Eram mensagens limitadas e restritas.
Neste sentido especial, Apostos e Profetas não existem mais, pois se existissem, a Bíblia ainda não estaria concluída. Por isso, ainda que o Espírito fale aos cristãos hoje, em nada se compara ao que já está feito! Se perdermos a noção de suficiência completa das Escrituras para a nossa fé e conduta, certamente mergulharemos no caos. Eu creio em ações milagrosas de Deus, mas não vivo esperando por elas, ou na dependência delas. A fé da Igreja baseia-se na Palavra de Deus.
Rev. Marcelo Lemos, do blog Olhar Reformado, e colaborador do Genizah!
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