Ricardo Gondim
O Brasil sofre. De repente todos nos sentimos irmanados pela dor. O trauma de saber que pelo menos 232 vidas foram arrancadas prematuramente parece demais. Apesar de saber que no Brasil se faz vista grossa à legislação que previne acontecimentos como o de Santa Maria, apesar de todos os senões que evitariam tantas lágrimas, nos vemos mais uma vez diante do que a filosofia trata como contingência. Esclareço: contingência significa que há acontecimentos desnecessários. Os fatos tenebrosos não fazem parte de um encadeamento inevitável.
Afirmar que uma tragédia pode ser evitada implica em que ela não foi orquestrada por uma divindade. Na contingência fatos ocorrem sem alguma razão que os explique ou justifique, e que escaparam da engrenagem de causa e efeito. Se o teto de uma igreja cai, um avião despenca, uma boate pega fogo, é porque o mundo contém espaço para acidentes – causados por negligência, falha humana ou mecânica- e podem matar sem que se atrelem a fado, destino, punição ou plano de Deus.
Sem atinar, muitos repetem a crença de que só se morre quando chega a hora. Para que tal afirmação seja verdadeira, destino precisaria vir escrito com “d” maiúsculo, pois necessitaria de inteligência e controle para reunir em uma casa de espetáculo, avião ou ônibus, todas as pessoas destinadas a morrer naquele dia específico. Acreditar assim concede à fatalidade um poder apavorante: imaginar que jovens, seduzidos por uma orquestração oculta, entraram como gado no matadouro.
Da mesma forma, muitos tentam encadear os eventos acidentais da vida, supondo que Deus “permite” sinistros com algum propósito. Querem dizer que cada pessoa, com histórias, projetos, sonhos, viu-se arrancada da existência “porque Deus assim quis”. O objetivo de Deus seria um mistério que ninguém entende e será revelado a longo prazo?
Como ter fé em um Deus que “deixa” rapazes e moças se pisotearem até a morte? Ele utiliza eventos macabros para ensinar as pessoas a terem medo dele? Esse é o seu jeito de produzir arrependimento? Tal entendimento faria com que a biografia de cada indivíduo que se perdeu fosse descartável. Deus precisaria, inclusive, manter-se frio, desprezando as lágrimas de mães e pais. Alguns chegam a ensinar que o Divino Oleiro faz o que quer e não podemos questioná-lo. Deus mata, afoga, asfixia e dá as costas em “vontade permissiva” porque deve conduzir a macro história para a sua glória final?
Nas grandes tragédias, alguns se contentam em explicar os eventos através da doutrina do controle absoluto. Afirmam que Deus tem todo o poder e não seria difícil para ele reunir em um só lugar as pessoas que deveriam morrer. Um Deus com requintes desse maquiavelismo, não passaria de um demônio. Deus é bom. Satisfaz pensar que na divina economia Deus ainda vai compensar a morte absurdamente desnecessária de tantos jovens? Difícil explicar tal conceito aos pais, avós e parentes que sonharam em vê-los terminando a faculdade, casando e tendo filhos. Bastaria falar da vida depois da morte para consolar mais de duzentas mães acorrentadas à trágica realidade de que Alguém lhes roubou a razão de viver?
A idéia de que Deus tem um plano para cada morte se esvazia diante dos números. Aviões caem, ônibus tombam, boates incendeiam. Todos os dias incontáveis acidentes acontecem. Como explicar as balas perdidas, os erros médicos e os atropelamentos provocados por bêbados? Todos cumprem alguma ordem ou são inevitáveis? Uma senhora de nossa comunidade caiu da laje de sua casa em construção, quebrou a coluna e ficou paraplégica. Ela fotografava a obra para que a filha lhe ajudasse nas despesas do acabamento. A mais tosca explicação que a teologia poderia dar ao seu infortúnio é que Deus tem um plano para deixá-la paralítica ou a puniu por algum pecado.
Jesus considerou em seus ensinos um mundo contingente. Contradizendo a religiosidade popular judaica, ele desconectou a queda de uma torre de qualquer desígnio divino. Não concordou com a insinuação dos discípulos de que a cegueira de um mendigo era consequência do pecado dele ou de seus antepassados. No Sermão do Monte, Cristo advertiu os seus seguidores de que mesmo alicerçando a casa sobre a rocha, eles não seriam poupados dos ventos contrários e da tempestade.
O mundo das relações, devido ao amor, precisa de liberdade, e essa liberdade produz contingência. Portanto, acidentes, percalços, incidentes, fazem parte da condição humana. O contrário seria absoluta segurança. Sem a ameaça do sofrimento, sem a possibilidade da morte prematura, não enfrentaríamos ameaça de espécie alguma. Acontece que a ausência da contingência nos desumanizaria. A consciência do risco de adoecer e a imprevisibilidade da morte súbita, embora angustiantes, são o preço que pagamos por nossa humanidade. Jesus encarnou a compaixão de Deus, (compadecer significa sofrer junto), para nos mostrar que Deus sabe do risco de viver. Ele reconhece que mal e bem acontecerão no espaço da liberdade, por isso, oferece o ombro e as lágrimas. Deus não deseja que nossa vida se perca no inferno da dor.
Qualquer desastre revela a inutilidade de pensar que o exercício correto da religião ou a capacidade tecnológica bastam para anular a contingência. A vida será sempre imprecisa e efêmera. Diante da possibilidade do sofrimento, aprendamos a chorar com os que choram.
Soli Deo Gloria
NOTA : Gosto muito dos artigos e pregações do Ricardo Gondim , não concordo em tudo com ele , mas entendo que o Gondim é brilhante e honesto em suas palavras.
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